Relato do Encontro de Outono da Granja Viana-SP Mythological Group


Dame à la Capuche (29 a 22.000 a.P), Salle Piette, Musée d´Archéologie Nationale, França.


Por Monica Martinez

            No dia 11 de março iniciamos os encontros da roundtable da Granja Viana da Fundação Joseph Campbell (Granja Viana-SP Mythological Roundtable ® Group). Trata-se de um grupo que se reúne quatro vezes por ano desde 2007, portanto que está completando 13 anos de atividades em 2020.
            A primeira novidade foi a mudança de local. A partir deste encontro, passamos a nos reunir na Livraria Nobel do Shopping The Square Open Mall , localizado na Granja Viana (Cotia-São Paulo). O círculo de conversa, mergulhado em ambiente aconchegante rodeado de livros, foi inspirador para começar as discussões sobre o livro As Transformações do Mito através do Tempo (CAMPBELL, 1997).
            A obra foi lançada nos Estados Unidos em 1990 e seu subtítulo em inglês é bastante explicativo: Thirteen brilliant final lectures from the renowed máster of mythology. Em bom português, treze palestras finais do renomado mestre da mitologia. Assim, o livro reúne a essência do pensamento campbelliano, já maduro, que vai se desenrolando de uma forma histórica, com linguagem envolvente, uma vez que o conteúdo foi ministrado em palestras.
            Como foi lançado em 1990, é possível que alguns dados estejam desatualizados, sobretudo relativos às descobertas arqueológicas.  Contudo, o fio condutor permanece forte e vigoroso, com o mitólogo estadunidense iniciando seu argumento com a frase: “O material do mito é o material da nossa vida, do nosso corpo, do nosso ambiente; e uma mitologia viva, vital, lida com tudo isso nos termos que se mostram mais adequados à natureza do conhecimento da época” (CAMPBELL, 1997, p. 7).

Vênus de Lespugue (29 a 22.000 a.P), Musée de l´Homme, França

Para Campbell, uma “mulher com seu filhinho é a imagem básica da mitologia” (CAMPBELL, 1997, p. 7), em particular das sociedades matrilineares, com sua noção de participation mystique, uma vez que a primeira experiência de qualquer indivíduo é com o corpo da mãe” (CAMPBELL, 1997, p. 7). Ele diz:


Quando consegue experimentar, em relação ao universo, uma união tão completa e natural quanto a da criança com sua mãe, o indivíduo está em completa harmonia e sintonia com esse mesmo universo. Entrar em harmonia e sintonia com o universo, e permanecer neste estado, é a principal função da mitologia (CAMPBELL, 1997, p. 7).

Em outras palavras, ele simplifica das quatro conhecidas funções mitológicas (pedagógica, sociológica, cosmológica e mística) para esta única. Em seguida, Campbell aborda as esculturas das Vênus paleolíticas, representando o mistério do corpo feminino gerador de vida (CAMPBELL, 1997, p. 17).

“Onde se tem a agricultura como base, a deusa se torna a figura mitológica principal, personificando as energias da natureza que transformam o passado em futuro, através da transformação do sêmen em criança, da semente em fruto” (CAMPBELL, 1997, p. 23).



Achadas por arqueólogos em moradias, elas contrastam com as pinturas rupestres encontradas em cavernas-templos, como as de Lascaux na França, “frias, perigosas, escuras, assustadoras”, santuários de ritos masculinos nos quais os “meninos se tornavam homens” (CAMPBELL, 1997, p. 18). Nestas cavernas, “Penetra-se pela portinhola estreita como por uma vulva, ingressa-se no corpo da mãe e ali dentro tudo é mágico” (CAMPBELL, 1997, p. 23). Campbell traça o paralelo entre as cavernas-templo e as catedrais, uma vez que ambas nos elevam a um campo mágico que representariam essa segunda passagem pelo útero, agora simbólica, permitindo o renascimento do homem num outro plano: o espiritual.

Vênus de Willendorf (28 a 25..000 a.P), Naturhistorisches Museum Vienna, Áustria.

Da passagem da infância para a maturidade, Campbell segue abordando uma segunda crise: a do casamento, no qual o indivíduo “se torna membro de um ser duplo” (CAMPBELL, 1997, p. 26). Casado de 1937 até seu falecimento em 1987 (portanto meio século) com Jean Erdman, dançarina e coreógrafa estadunidense de dança moderna, o mitólogo tinha uma visão bastante mitológica da união entre casais: “a mulher é a iniciadora em qualquer casamento. É quem está mais próximo da natureza e de tudo que lhe diz respeito. Ele está ali apenas para ser esclarecido” (CAMPBELL, 1997, p. 23). Dado o tempo histórico da vida do autor (1904-1987), é natural que seu pensamento se concentre majoritariamente nas relações amorosas heterossexuais, sem contemplar as nuances LGTB+ da contemporaneidade, entre outras.
Com as invasões dos guerreiros indo-europeus ao redor de 6.000 a.P., inicia-se um gradual processo de implantação de cultura patrilinear, pautada pela lei como nos exemplos de Moisés e Hamurábi. E com ela emergem igualmente duas questões importantes. A primeira refere-se aos primórdios do tipo de guerra que tem se caracterizado desde então no mundo dito civilizado.
A segunda é em relação à mudança do eixo das divindades femininas para os masculinas. Ainda assim, registros históricos como o texto De Bello Gallico, escrito pelo imperador romano Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.) para relatar as Guerras da Gália (58 a.C. a 52 a.C.), sugerem de que essa passagem teve um trânsito inicial que primou pela fusão de cultos ou doutrinas religiosas de visões do mundo distintas:

Quando chegou à Índia, no quarto século a.C., Alexandre Magno e seus jovens oficiais identificaram ali os mesmos deuses que eles próprios adoravam. E estabeleceram correlações. Khrisna passou a identificar-se com Herácles, Indra com Zeus e assim por diante. Quando, três séculos mais tarde, César chegou à Gália (...) a religião celta é descrita por ele segundo a terminologia dos deuses romanos – Apolo, Mercúrio etc. De modo que nem sempre ficamos sabendo a que deuses ele se refere. É o sincretismo” (CAMPBELL, 1997, p. 23).

Contudo, com os indo-europeus e, da mesma época, os povos vindos do deserto sírio-arábico como os semitas, as mais importantes divindades dos guerreiros são masculinas “tonitruantes, como Iavé e Zeus” (CAMPBELL, 1997, p. 72). A emergência das mitologias dos povos do deserto, como mais tarde o filósofo japonês Tetsuru Watsuji vai aprofundar tão bem (WATSUJI, 2006), muda radicalmente o cenário das divindades de cosmovisão universal para tribal.
Chegando, porém, às tribos semitas, não é possível dizer: “Aquele a quem chamais Ezra nós chamamos Javé.” Tentem fazê-lo e vejam o que acontece. Temos aqui um exclusivismo e um tribalismo que persistem no judaísmo até hoje. Não bastasse isso, Iavé é o Deus único, enquanto os outros são demônios. Não existe Deus em toda a Terra, a não ser em Israel. Tal é a religião que herdamos em nossa tradição ocidental.  (CAMPBELL, 1997, p. 73).

A este pensamento se adiciona o basilar campbelliano, de que as três religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, possuem um Deus com as mesmas características e ainda assim seguem em conflito entre si. Como Campbell dizia, Deus não é um, Deus não é muitos, pois a noção de divindade transcende estas categorias.
Para finalizar, registramos a noção de Deus campbelliana. “Deus é simplesmente a nossa noção de algo que simboliza a transcendência e o mistério” (CAMPBELL, 1997, p. 21). Aliás, Campbell não via conflito entre o misticismo e a ciência. Mas sim entre a ciência do ano 2.000 a.C. e a contemporânea. “E o que nos perturba é o fato de termos um texto sagrado que foi composto em outro lugar, por outro povo, há muito tempo, e que não tem nada a ver com a experiência de nossas vidas. Há, pois, um distanciamento fundamental” (CAMPBELL, 1997, p. 49).
Para o mitólogo, esta é a diferença entre algo considerado “petrificado, exaurido, morto, não mais atuante, e a mitologia vista como algo atuante”. “Quando a mitologia está viva, é desnecessário dizer o que ela significa. É como olhar para um quadro que nos diz realmente alguma coisa. (...). O mito deve funcionar como uma pintura. Pode-se explicá-lo se realmente já o experimentamos, interpretamos, ampliamos e assim por diante; mas é preciso que ele atue”  (CAMPBELL, 1997, p. 49).

Até o próximo encontro!

Monica Martinez

Coordenadora para a América do Sul 
da Joseph Campbell Foundation Mythological RoundTable® Program
Diretora da JCF Mythological RoundTable® Group of Granja Viana, Brazil*




Bibliografia
CAMPBELL, J. As transformações do mito através do tempo. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
WATSUJI, T. Antropología del paisaje: climas, culturas y religiones. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2006.



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