“[...] em
relação aos símbolos: eles não se referem a eventos históricos; eles se
referem, através de eventos históricos, a princípios espirituais ou
psicológicos e forças de ontem, hoje e amanhã, e que estão em todo lugar”
(CAMPBELL, 2015, p.86).
O segundo encontro do ano promoveu a continuidade do estudo
voltado para o mais recente livro lançado em português do mitólogo
estadunidense Joseph Campbell (1904- 1987). Trata-se de Deusas: os
mistérios do divino feminino (editora Palas Athena, 2015).
O
encontro realizado na cidade de Cotia, São Paulo, contou com a participação da
psicoterapeuta Ana Maria Galrão Rios que abordou e desenvolveu
aspectos relacionados aos capítulos três, O Influxo
Indo-Europeu, e quatro, Deusas
Sumérias e Egípcias da obra de Campbell.
Aprofundando
a temática, Rios apresentou sua dissertação de mestrado, concluída em 2008,
intitulada Um
estudo junguiano sobre a imagem de Deus das crianças num contexto cristão. O trabalho foi desenvolvido com alunos do ensino fundamental
e médio e buscou observar a imagem de Deus nas crianças de diferentes faixas
etárias (RIOS, 2008).
De antemão a
palestrante aponta para as relações entre a construção da imagem do Deus
Judaico/Cristão com a construção da imagem concebido pelas crianças. O Deus
Judaico/Cristão é aquele que cria o ser humano a partir de seu desejo e que
possui uma relação com sua criação demonstrando raiva, bondade, amor, tristeza
ou até mesmo punindo.
A imagem de um
Deus participativo é construída no imaginário infantil nos primeiros anos de
vida conforme as relações que as mesmas desenvolvem com seus pais. Sendo assim,
Deus é representado como benevolente, bravo, amoroso ou não, perante a imagem e
semelhança que as crianças possuem de seus pais.
Rios afirma que o
cérebro humano vive sobre um imperativo cognitivo (imperativo semelhante ao desenvolvido
pelo filósofo do século XVIII Immanuel Kant), ou seja, os humanos sempre buscam
saber e explicar os fenômenos. Não importa a complexidade da explicação, o
cérebro cria um enredo e, se necessário, um mito para preencher as lacunas.
Na concepção da
palestrante, os mitos que acreditamos moldam a forma com que nos relacionamos
com a vida desde os primórdios.
A construção da
imagem de Deus é concebida em crianças de forma distinta conforme cada idade. Segundo
a pesquisadora, elas passam por quatro ciclos arquetípicos do desenvolvimento:
matriarcal, patriarcal, de alteridade e cósmico.
No ciclo
matriarcal a criança
se percebe como centro, não somente do próprio mundo, mas do mundo enquanto
tal. Deus
é construído à imagem da criança e, portanto, é um Deus que brinca (FIG.1).
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Figura 1: Deus que brinca Fonte: RIOS, 2008 |
O ciclo patriarcal é responsável por fixar o símbolo do
divino no imaginário da criança. Valores como ordem, disciplina, autoridade e
justiça se manifestam nos desenhos; as imagens e símbolos se fixam e codificam
conforme os padrões culturais onde a criança está inserida (FIG.2).
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Figura 2: Jesus crucificado
Fonte: RIOS, 2008
|
A percepção da existência e importância do outro ocorre no
ciclo da alteridade. Nele, as escolhas são baseadas não apenas no próprio
sentimento, mas também no sentimento do outro (FIG.3). Um exemplo desse ciclo são
as festas de aniversários organizadas pelos próprios adolescentes (12-14 anos),
que enfrentam dificuldades em convidar amigos e deixar de fora alguns colegas devido
aos conflitos que naturalmente permeiam grupos nessa faixa etária.
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Figura 3: Deus branco e negro, consciência e compreensão das diferenças Fonte: RIOS, 2008 |
É por meio do ciclo cósmico que as polaridades transcendem e
há uma percepção de tudo como um todo único que está em permanente mutação.
Rios aponta para a importância de se compreender que tanto o
patriarcal, quanto o matriarcal possuem pontos positivos e negativos. A
polaridade negativa se apresenta quando há um uso excessivo dessas
características.
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Inanna, deusa da Suméria Fonte: Pinterest |
Em contrapartida, o matriarcal funcionaria melhor em
pequenos grupos já que seu interesse está relacionado à pertinência,
continência e sobrevivência.
Nessa perspectiva, o feminino em um sistema patriarcal
abusivo pode ser posto em condição de submissão para sobreviver. No entanto, apesar
das mulheres não possuírem dentro desse sistema uma representação do sagrado de
forma direta, a pesquisadora adverte que representações recorrentes a Deusa
sempre existiram e estão presentes.
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Casamento sagrado: Isis como uma ave de rapina sobre Osiris morto no mito da geração de Hórus |
Como afirma Ana, o masculino e o feminino são polaridades
encontradas em todos os seres humanos e o abuso de um sistema, seja qual ele for,
é prejudicial.
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Maat, a deusa egípcia da Justiça: pena como símbolo |
As narrativas míticas são encontradas em todas as partes, nas palavras da psicoterapeuta Ana
Maria Galrão Rios: “Os deuses vão nos visitar
através dos símbolos” e para Joseph Campbell (1904- 1987): “[...] quando o masculino entra, há
divisão, ao passo que, quando o feminino entra, cria-se a união” (2015, p.122).
Mas é somente quando ambos estão em relação que há a possibilidade de
alteridade e, no vocabulário da psicologia analítica, transcendência, no
sentido dialético de a soma das partes ser maior que o todo.
Por Vanessa Heidemann
Referências
CAMPBELL, J. Deusas: os
mistérios do divino feminino. São Paulo: Palas Athena, 2015.
RIOS,
A. M. G. “Um estudo junguiano sobre a imagem de
Deus das crianças num contexto cristão”.
2008. 256 f. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em:
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