Relato do encontro de inverno da Mesa Redonda Mitológica da Granja Viana-SP


Joseph Campbell e Jean Eardman: um casamento de 49 anos



A primeira live a gente não esquece.

Quarta-feira, 6 de maio, 2020, 19h15.

Confesso que naquele momento eu pensava: “onde eu estava com a cabeça quando decidi fazer o encontro de inverno por meio de uma live no Youtube?”. Voltei no tempo e me perguntei como eu me havia posto ali. Pensei no isolamento social que começara há exatos 52 dias para mim, em 16 de março. Em como, desde 2007, quando começamos com o então Núcleo Granja Viana-SP da Fundação Joseph Campbell (hoje Mesa Redonda Mitológica da Granja Viana-SP ou Mythological RoundTable® Group of Granja Viana-SP, Brazil), nos orgulhávamos de ter os quatro encontros anuais. Alguns dos encontros até graváramos breves vídeos, que era o motivo de haver um canal pronto ali no Youtube para ser usado.

19h20. Fiquei surpresa com as pessoas que aguardavam online para ouvir a palestra. Comecei a pensar que não talvez não seria tão ruim assim a experiência. Meus pensamentos se voltaram para o conteúdo dos quatro capítulos que abordaria. E em como tive que pensar muito para achar um recorte que os unisse. Afinal, eles incluíam filosofia perene, budismo, ioga kundalini, psicologia e espiritualidade.

19h25. Minha equipe técnica para assuntos digitais (leia-se minha filha Laura, designer gráfica das boas) me avisa que o Youtube havia mandado uma mensagem de que não seria possível usar o smartphone como havíamos planejado, devido à sua imagem melhor.  Corro ligar o notebook. Respiro fundo e penso na noção de ideias elementares (cf. étnicas) do antropólogo alemão Adolf Bastian (1826-1905), que alicerça a obra campbelliana: “em todas as mitologias e sistemas religiosos do mundo as mesmas imagens, os mesmos temas aparecem constantemente em toda parte” (CAMPBELL, 1997, p. 91).

E a noção de que, a certa altura do século 9 ou 8 a.C. ocorreu uma mudança de ênfase. “Em vez de serem simplesmente apresentadas, as imagens passam a ser interpretadas”. (CAMPBELL, 1997, p. 91). Para Campbell, isso valia dizer que se abandonara “uma relação visual e ativa com as formas do mito – através das imagens míticas e dos rituais por cujo intermédio o mito é restituído à vida – e passa-se a refletir sobre essas coisas, a interpretá-las” (CAMPBELL, 1997, p. 91).

O resultado? Uma “investida gradual contra as ideias mitológicas, e por isso o criticismo ocidental tendeu a distanciar-se das ideias elementares” (CAMPBELL, 1997, p. 92).

Dessas imagens compartilhadas surgem os sonhos e os mitos. Que para o mitólogo estadunidense provêm do grande fundo biológico. “O mito ocorre na mesma zona do sonho, zona que eu chamaria Sabedoria do Corpo. Quando adormecemos, é o corpo que está falando. O que move o corpo são energias que lhe fogem ao controle. (...) São energias e são tipos de consciência” (CAMPBELL, 1997, p. 92).

Por outro lado, a complexidade das imagens está umbilicalmente ligada à dos símbolos. Como diz Campbell nesta obra, “aquilo que os símbolos falam é algo indizível” (CAMPBELL, 1997, p. 95).
Por isso, segundo ele, “um de nossos problemas (...) é a enfatização aristotélica do pensamento racional e o enfoque bíblico da referência étnica do símbolo mítico” (CAMPBELL, 1997, p. 95).
Como exemplo, Campbell cita Benares, a cidade de Shiva – mas poderia citar muitos outros, tal sua erudição –, onde o povo se banha no Ganges: “a concepção de peregrinação como um movimento interior para o centro do próprio coração está sendo traduzida literalmente, num ato físico” (CAMPBELL, 1997, p. 95). Em outras palavras: se lança a energia psíquica para fora quando o simbolismo pede que ela seja trazida para dentro.

19h30. Hora de começar. Lembro que estamos em tempos sem precedentes, em que aninhados em nossas casas é reconfortante conceber nosso espaço como “a terra em que se vive como sendo a terra sagrada” (CAMPBELL, 1997, p. 95). Mas que toda terra é sagrada.

Clico no botão transmissão ao vivo e a live se inicia. Começo prestando uma singela homenagem à esposa de Campbell, Jean Eardman, falecida dois dias antes, no Havaí, aos 104 anos de idade. Quatro de maio, dia de Star Wars. Ela foi cofundadora da Fundação Joseph Campbell e sem seu apoio provavelmente não estaríamos aqui nesta noite. Como ele lembra no livro ao falar de Benares, “O Ganges, na realidade, é uma deusa, Ganga, e essa água que flui é a graça que nos chega por força do poder feminino” (CAMPBELL, 1997, p. 95).

O próprio mitólogo disse em O Poder do Mito que o fato de ter lecionado a vida inteira no  Sarah Lawrence College, para mulheres, o levou mais longe, pois as perguntas de suas alunas o ajudaram a formular seu pensamento de uma maneira que se enraizava no cotidiano das garotas que perguntavam o que aqueles mitos todos tinham a ver com suas vidas.

Quase ao final dos 30 minutos, percebo que posso responder às/aos participantes. Prometo que na próxima live estarei melhor treinada e conseguirei interagir mais e melhor. A live está chegando ao fim e preciso encerrá-la e começar a reunião na sala do Zoom. Onde de fato ocorre a melhor parte: a roda de conversa. No dia seguinte vou confirmar que realmente valeu o esforço e a palestra ficou gravada. O link é https://youtu.be/aK694iQBR_w

Clico na tecla vermelha de encerrar a transmissão ao vivo. Na cabeça, o pensamento: seguramente Campbell não teria ido tão longe em suas reflexões, nem as feito da forma tão vivaz e leve que o tornaram conhecido, não tivesse tido uma dançarina como companheira de vida. Descanse em paz, Jean.


Monica Martinez
Inverno de 2020, durante a pandemia de Covid-19


Referências
CAMPBELL, J. As transformações do mito através do tempo. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.


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