Nesse ano de 2016, quando o Núcleo
Granja Viana da Fundação Joseph Campbell propôs diálogos sobre as diferentes
raízes da mitologia brasileira, o tema que encerrou esse ciclo de estudos foi “As raízes indígenas da mitologia e cultura
brasileira” em palestra ministrada pelos professores Mário Ramão Filho
e Almir da Silveira.
Filho de mãe guarani, Mário Ramão Filho é professor de
Língua e Cultura Guarani na Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (Unila) desde 2012. Já Almir da Silveira é professor de língua e cultura guarani
no curso de extensão cultural do Centro Ángel Rama da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).
A palestra começou com a fala de Ramão, que fez uma
introdução ao mundo guarani por meio do significado do termo Ayvu Rapyta, uma compilação dos mitos orais
do povo guarani. Ayvu significa
palavra ou língua e Rapyta alma, ou
parte divina do ser humano.
O professor esclarece que as palavras de origem guarani
possuem grande complexidade, o que dificulta as traduções. A palavra Ayvu, por exemplo, significa palavra e
som ao mesmo tempo. Isso porque na cultura guarani som e espírito são indissociáveis.
Além da dificuldade linguística há ainda uma grande
dificuldade relacionada ao levantamento histórico dos mitos guaranis, já que
não há como verificar até que ponto o olhar do “homem branco” influenciou essas
narrativas. Por isso, segundo o professor, é sempre necessário fazer alguns
questionamentos: Como o índio conta esse mito para o branco? O branco o romantiza?
De onde nascem os mitos? De onde eles vêm?
O mito da criação guarani gira em torno do deus Ñanderu ou Nhanderu, que é considerado o primeiro, o grande pai. Apesar de o
povo guarani ser politeísta, este deus está acima dos outros.
Ñanderu teve quatro filhos, Jakaira, Karai, Ñamandu e Tupã,
cada um relacionado a um ponto cardeal (norte, leste, sul e oeste).
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Representação do deus guarani Ñanderu e seus quatro filhos |
Compartilhando a riqueza do imaginário guarani o Prof. Mario
nos conta a Lenda das Cataratas, que
segundo ele é muito forte em Foz do Iguaçu, região onde vive e leciona
atualmente.
De acordo com a narrativa, havia uma índia prometida para se
casar com o deus cobra Tupã. No entanto, um índio se apaixona por ela e eles
fogem juntos. Furioso, Tupã cria fendas na terra,
dando origem às cataratas. Para punir o casal, transforma a índia em uma pedra
e o índio em uma palmeira, fazendo com que ambos pudessem se olhar, mas nunca
mais se tocar.
Dando continuidade à história de Ñanderu e sua origem, Silveira relata que,
segundo o mito, antes havia apenas o caos e a escuridão e o deus se autocriou na forma de uma árvore.
Assim, os adornos que os homens guaranis utilizam em suas cabeças são símbolos
do masculino e representam a copa dessa árvore divina.
Para transitar entre os mundos, o deus dá vida a dois seres.
O primeiro é o beija-flor, que age como mensageiro entre este mundo e o mundo
sútil/espiritual. O segundo é a coruja, a única que consegue enxergar na
escuridão e, portanto, consegue ter uma perspectiva deste mundo através dela.
A palavra é a primeira coisa que Ñanderu dá aos homens, e ela deve ser utilizada
com parcimônia. Segundo os professores, os índios guaranis não falam muito, pois,
dentro de sua cultura, deve-se tomar cuidado para quem se dá a palavra, já que eles
compreendem que a palavra e a alma são uma única e mesma coisa. Neste sentido,
falar demais significa que a pessoa está se esvaziando de seu poder. Vem daí a
expressão nhem nhem nhem, falar de forma verborrágica e vazia de conteúdo.
Para os guaranis este mundo não é diferente do mundo
espiritual, por isso eles procuram viver dentro do princípio do Teko Porã (Teko, vida e Porã,
boa). Se esse princípio for desrespeitado, o guarani pode perder o direito a
ela, ter retirado seu Téra (nome) e passar a ser um Terá O (sem nome).
Os professores nos advertem sobre a seriedade desse processo, já que na cultura
guarani toda palavra significa alma. Desta forma, quando o nome de um indivíduo
é retirado também lhe seria retirada a alma.
Ainda sobre mito da origem, Silveira diz que para os
guaranis o que está no centro do mundo é uma palmeira (Pindo). Daí o nome dado para o Brasil pelo povo guarani era Pindorama, ou seja, Terra das Palmeiras.
Sobre cinco palmeiras o “Primeiro Mundo” foi criado. Neste mundo homens,
animais e deuses conviviam pacificamente, não havendo nenhuma doença ou mal. No
entanto, depois de um incesto entre os homens este lugar foi destruído com um
diluvio. Importante ressaltar que, segundo o professor, a semelhança entre a
narrativa guarani com a narrativa cristã foi percebida pelos jesuítas, que aos
poucos substituíram uma pela outra.
Outra narrativa que se aproxima da cristã é a história de Kerana e Tau, casal que teve sete filhos monstros por conta de uma maldição,
por meio da qual durante sete anos eles amaldiçoariam a Terra. Ao ser procurado
para intervir nessa situação, Ñanderu
tem uma ideia: envia uma linda índia para seduzir um dos irmãos monstros e
a instrui a se casar com ele, exigindo apenas que no dia de seu casamento os
outros irmãos estejam presentes. Seduzido por tamanha beleza, o irmão escolhido
cede ao pedido e convida os demais. Apesar de compreender os riscos que corre,
a índia se prontifica a seguir com o plano. Enquanto todos estão comemorando e
bebendo dentro de um lugar fechado, ela tenta sair para dar o sinal combinado, mas
um dos irmãos percebe e evita sua saída.
Gritando lá de dentro, ela avisa que não conseguirá sair e
sacrifica a própria vida enquanto o fogo se espalha matando a todos. Como recompensa
por sua bravura, Ñanderu a
transforma em uma estrela, Poraci, nada
menos que a primeira a aparecer no céu ao anoitecer para relembrar a todos sua
coragem. Sim, é o planeta Vênus ou estrela d´alva, como a conhecemos.
Após a “Primeira Terra” se originou a “Terra Nova”, esta
onde vivemos e onde os deuses não estão mais presentes, mas as doenças e a fome
sim. A grande esperança para o povo guarani está em encontrar a “Terceira
Terra”, uma terra sem males, onde não haverá mais maldade, fome ou doenças.
Segundo os
professores, a migração para o litoral do Brasil pode estar relacionada à busca
desse “novo mundo”. Como na cultura guarani não há distinção entre o mundo
espiritual e o material, seria possível encontrar esta espécie de paraíso na
terra ainda em vida.
Sobre a morte, segundo essa tradição, quando um guarani
morre ele ficaria vagando durante algum tempo na forma de espírito pela tribo
até reencarnar no corpo de um animal. Essa crença está associada com um rito guarani
que transformaria a carne em planta antes de sua ingestão, uma forma de
reverenciar os ancestrais que estão se doando para alimentar as novas gerações.
O povo guarani pode ser encontrado no Brasil, Argentina,
Paraguai e Bolívia, sua população está entre 15 a 16 milhões de pessoas, sendo
que aproximadamente 6 milhões estão no Paraguai. Atualmente a língua guarani
foi instituída nas escolas do Paraguai como sendo obrigatórias, porém, sua
proibição durou muito tempo no país e as crianças que a empregava chegavam a ser castigadas fisicamente nas escolas.
Para Ramão, o
fato de a língua passar de proibida para obrigatória sem um período de
adaptação da população pode favorecer e reforçar o preconceito relacionado a
ela no país. Silveira também ressalta que, apesar de atualmente a língua ser obrigatória
nas escolas do Paraguai, o material utilizado foi produzido de uma maneira
elitizada, por acadêmicos que não consultaram a população que utilizava a
língua em seu cotidiano − processo vertical que prejudica o aprendizado e não
garantiria um aprendizado efetivo do guarani.
Após a fala de ambos os professores, foi aberta a discussão para
os participantes. Nesse momento, ficou evidente o encantamento que a língua e
cultura guarani causou. Curiosos em relação à complexidade das palavras e em
como elas são capazes de explicar aquilo a que nomeiam de forma tão rica, os
professores ensinaram mais três palavras em guarani e apontaram novamente para
a dificuldade de traduzir palavras que carregam tanto significado em si.
Ko’e rõ, por
exemplo, na tradução simplificada significa “amanhã”. Já o mais próximo de seu
significado original seria “se amanhecer”.
Mba’eichapa Neko’ẽ , “bom dia”, na verdade significa “como
você amanheceu hoje?”.
Aguyjevéte é mais do “muito obrigado”, por se tratar de uma saudação
com um significado espiritual e sagrado.
No decorrer do debate muitos participantes apontaram para as
questões sociais que envolvem a população indígena e para a similaridade entre
os mitos guaranis com outros mitos encontrados em diferentes partes do mundo.
Ficou evidente ainda como no Brasil existe uma ampla
divulgação de diversas culturas e seus respectivos mitos. No entanto, o quanto
ainda há de potencial e oportunidades para ampliar o conhecimento da cultura
indígena, que é tão próxima e tão distante ao mesmo tempo no nosso país.
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