Relato do Encontro de Inverno: as raízes árabes da mitologia brasileira



Como parte da proposta para 2016 do Núcleo Granja Viana da Fundação Joseph Campbell, que visa dialogar sobre as diferentes raízes da mitologia brasileira, o Encontro de Inverno contou com a palestra de Paulo Daniel Elias Farah, apresentando as influências da cultura árabe no Brasil.
Farah é graduado (Língua e Literatura Árabe), mestre (Linguística) e doutor (Letras) pela Universidade de São Paulo, sendo docente e pesquisador na mesma instituição, desenvolvendo estudos envolvendo Literatura, História e Cultura Árabe. Possui em sua produção bibliográfica o livro Deleite do estrangeiro em tudo que é espantoso e maravilhoso, entre outros.
O professor iniciou sua fala expondo um conceito que, embora elementar, por vezes pode ser visto de maneira errônea: a distinção entre árabe, uma etnia, e muçulmano (também islâmico), uma característica religiosa. Segundo Farah, árabe seria aquele que se vê como vinculado a um dos 22 países árabes (a saber, Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Comores, Djibouti, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Iraque, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Palestina, Catar, Saara Ocidental, Síria, Somália, Sudão e Tunísia). Em seguida, o palestrante abordou os quatro principais momentos históricos de contato entre o Brasil e os povos árabes e/ou muçulmanos.
O primeiro momento seria já na colonização do Brasil, uma vez que os árabes estiveram presentes na Península Ibérica entre os séculos VIII e XVII, influenciando significativamente a cultura portuguesa. A influência mais conhecida estaria no próprio idioma, uma vez que, de acordo com Farah, mais de 3.000 palavras no idioma português tem origem árabe, dentre as quais se destacam as iniciadas em a ou al, como alface. Outra prova dessa influência estaria na literatura aljamiada, ou seja, obras literárias escritas em português, porém utilizando alfabeto árabe.
Menos conhecida do que a influência linguística seria a influência náutica. O palestrante apontou que o desenvolvimento português nessa área teria sido propiciado pelos muçulmanos. O motivo disso seria um dos pilares do islamismo, a peregrinação uma vez durante a vida à Meca (Hajj). Impulsionados por essa obrigatoriedade religiosa, os muçulmanos teriam alcançado inovações importantes na navegação. A própria expansão muçulmana à Península Ibérica também teria raízes na busca por conhecimento, um valor caro aos islâmicos, ilustrado por Farah pelo provérbio “movimento é bênção”.
O segundo momento seria entre o final do século XVII e o século XVIII. Nesse período, indivíduos da África foram trazidos para o Brasil como escravos, dentre os quais encontravam-se grupos muçulmanos. No Brasil, as pessoas escravizadas que eram letradas (onde se observa novamente a busca por conhecimento islâmica, em contraponto ao patamar de eduação vista no Brasil da época) ficaram conhecidas como Malês.
Embora a origem do termo ainda seja objeto de debate, Farah se situa no grupo que defende o termo como oriundo de uma tradução de Mestre, tendo em vista o alto nível de letramento desses indivíduos em relação à média dos brasileiros do período. Apesar de não haver liberdade religiosa no Brasil na época, onde a religião oficial do império era o Catolicismo, os Malês mantinham a religiosidade islâmica em segredo. Isso porque, como apontou Farah, “não é possível desvincular conhecimento de espiritualidade, segundo algumas linhas do Islã”.
Além de influenciarem nas vestimentas brancas  ̶  até hoje associadas às tradições religiosas ligadas aos afrodescendentes  ̶, os muçulmanos tornaram popular (mesmo por parte da população brasileira cristã da época) o uso de patuás (também chamados gris-gris ou quadrados mágicos). Farah observou também o Levante dos Malês, ocorrido em 1835 em Salvador, tido como a “maior revolta da história em contexto urbano”. Como legado do levante, os malês teriam suscitado o debate às questões de igualdade e justiça social no Brasil.
No final do século XIX teria ocorrido o terceiro movimento, com uma migração de árabes para o Brasil. Evidencia-se aqui o termo árabe, e não muçulmano, uma vez que a população que migrou para o Brasil nesse período era essencialmente cristã. Isso, de acordo com Farah, reflete no dado de que hoje, dos cerca de 16 milhões de árabes que vivem no Brasil, somente cerca de 10% são muçulmanos.
Embora D. Pedro II tenha feito duas viagens ao Oriente Médio na época (1861 e 1876), Farah desmente o “mito do Brasil acolhedor” nesse caso, uma vez que, ao contrário das migrações européias da época, os árabes vinham para o país sem subsídios nem contratos de trabalho previamente arranjado. De toda forma, a primeira visita de um imperador latino-americano a países como Egito, Síria e Líbano teve grande repercussão nos jornais locais da época, tendo implantado no imaginário dos povos árabes a semente de uma terra farta, onde se plantando tudo se colhia.
Atualmente, vivemos o quarto movimento, com os recentes fluxos de refugiados que se intensificou nos últimos cinco anos. O Brasil acolhe atualmente cerca de 20 mil refugiados de mais de 30 nacionalidades diferentes, sobretudo sírios e congoneses. Contou sobre seu trabalho envolvendo essas pessoas na Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul – Países Árabes – África (https://bibliaspa.org/), com diversas atividades envolvendo a integração de refugiados no país.
Após sua fala, grande parte do diálogo com os participantes envolveu as questões do feminino no mundo árabe e islâmico, tema que antecipa a proposta de 2017 para o Núcleo, que pretende debruçar-se sobre a última tradução de Campbell para o português, o livro Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino, lançado em 2015 pela Palas Athena.

Tadeu Rodrigues

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