Por uma psique saudável

A cada ano elegemos um livro de Joseph Campbell para estudar ao longo de nossos quatro encontros anuais. Este ano optamos por O Voo do Pássaro Selvagem (Editora Rosa dos Tempos), de 1951, o primeiro livro que o mitólogo estadunidense escreveu após sua obra mais famosa, O Herói de Mil Faces.


Tem sido uma jornada encantadora. Um dos pontos que mais me chamou a atenção nesta obra foi a visão do mitólogo sobre a personalidade humana. Em particular quando ele cita o antropólogo húngaro Géza Róheim (1891-1953) para dizer que houve uma época em que o ser humano “era livre, sem peias, verdadeiramente autoconfiante, e adulto” (página 186).

Qual seria a diferença entre um adulto daquela época e de hoje na visão do autor? Lembrei-me do filósofo francês Gilles Lipovetsky que, em seu livro mais recente, A Cultura-Mundo:  resposta a uma sociedade desorientada (Companhia das Letras), defende a ideia de que vivemos em um mundo que prioriza o individualismo, a tecnologia, o capitalismo e o consumismo. Neste universo fragmentado, ainda que globalizado, o ser humano estaria hiperindividualizado, como diz Lipovetsky.

Em 1951, Campbell recorria às cavernas paleolíticas e à antropologia para explicar a questão. Róheim, autor de Magic and Schizophrenia (International University Press, 1955), tido como o fundador da antropologia psicoanalítica, ficou nove meses em 1929 com os nativos australianos Arrernte and Pitjantjatjara. Destes últimos, Campbell faz uma citação:

Nunca me esquecerei das crianças Pitjantjatjara, que aos oito ou 10 anos vagueavam pelo deserto e eram praticamente auto-suficientes. Um menino, armado de lança e olhos vivos, pode capturar o que precisa em matéria de animais pequenos e continuar assim de manhã até a noite. Nem mesmo um homem adulto pode fazer muito mais do que isso. A característica notável das economias primitivas é a ausência de uma autêntica diferenciação de trabalho. Uma divisão de trabalho incipiente ou rudimentar talvez exista, de acordo com princípios sexuais ou de idade, e pode haver alguma especialização incipiente ou em tempo parcial em questões de ritual e magia. Falta, porém, a verdadeira especialização. Significa isso que todo indivíduo é, tecnicamente, um mestre de toda a cultura ou, nos casos em que qualificações modestas são necessárias, de quase toda a cultura. Em outras palavras, todos os indivíduos são realmente auto-suficientes e adultos.

Nós, contudo, não crescemos de forma tão simples assim. Se indica alguma coisa, o testemunho da antropologia demonstra que o homem primitivo era livre, sem restrições e realmente auto-suficiente, em comparação com o homem medieval ou moderno (página 172-173).

Campbell prossegue com a ideia:

(...) enquanto nos acampamentos de caçadores a comunidade era constituída de um grupo de indivíduos praticamente equivalentes, todos eles no controle de toda a herança, nas comunidades maiores e muito mais diferenciadas que surgiram quando a agricultura e a criação de animais possibilitaram o surgimento de uma estrutura social permanente, mais ricamente articulada, a vida adulta consistia em adquirir, em primeiro lugar, certas artes ou habilidades especiais e, em seguida, a capacidade de suportar ou conviver com a tensão resultante – uma tensão psicológica e sociológica – consigo mesmo (como sendo meramente a fração de um todo mais amplo) e com outros indivíduos de treinamento, poderes e ideais inteiramente diferentes, que constituíam os outros órgãos necessários do corpo social (CAMPBELL, 1997: 173).

O ponto que Campbell destaca é o de que esta tensão de existir como uma fração e não como um todo orgânico – que nenhum dos caçadores primitivos teve de suportar – é vivenciada como nunca pelo ser humano atual. Só para citar o plano mais cotidiano da tecnologia: quem de fato sabe explicar como, ao apertar alguns botões em nossos aparelhos celulares, ele acessa esta esfera nebulosa que é a internet e dela sai com informações, participações em redes sociais, mensagens e, até, ligações telefônicas? Para uma parcela grande da comunidade brasileira, que usa todo dia este recurso, trata-se de algo mágico. O que de fato acontece com o cérebro dos usuários ao ser exposto às ondas eletromagnéticas do aparelhinho? A verdade é que nem os cientistas ainda possuem um consenso sobre o assunto.

De um lado, esta hiperfragmentação representa o mais recente segundo na saga humana. Nossa espécie está nesta trajetória evolutiva há mais de dois milhões de anos, porém estamos arraigados à terra, como agricultores ou moradores de cidades, há pouco mais de dez mil. Campbell diz que nossa psique evoluiu majoritariamente no contexto dos povos caçadores, dotados de uma psique mais integral. O resultado, segundo ele, “não é, talvez, apenas uma fórmula altamente especializada, não normal à psique da espécie, mas, sim, um conjunto de tensões, medos e expectativas geradas por uma sociedade baseada em uma economia agrícola (CAMPBELL, 1997: 175).

Ele prossegue:

“E podemos perguntar, também, se hoje, quando esse tipo de economia está cedendo lugar a outra, baseada na indústria, e a imagem cosmológica comensurável com o horizonte agrícola foi despedaçada para sempre – se hoje, nesta próxima grande era de transformação, as imagens geradas naquele antigo período de crise continuam conosco e, se assim, para quem e por quê?” (idem).

Por ter falecido em 1987, Campbell embarcou muito levemente na aventura digital humana. O que ele pensaria desta evolução da fragmentação da psique humana num mundo marcado agora pelo não tempo e não espaço? Penso que sua receita continuaria sendo a testada e aprovada por seres humanos de todos os tempos: o uso de narrativas e de rituais para ancorar os novos mitos, agora com teor planetário, no contexto local de cada povo.

Monica Martinez é coordenadora do Núcleo Granja Viana-SP da Fundação Joseph Campbell.

Texto originariamente publicado no site YouBliss.

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